sábado, 5 de outubro de 2013

O tempo, as palavras e o mundo, por Raphael Juliano.




    Depois de ter recebido um telefonema de minha irmã dizendo que meu sobrinho de um ano e dez meses me confundiu com o apresentador de TV Brito Júnior em uma sexta-feira quente de Montes Claros algumas coisas me vieram à mente.
   As palavras teriam o poder de invocar o tempo? Ou seria este último que se auto-outorgaria o direito de nos ofertar o palavrear através do passar dos anos? 
    O pequeno Enzo ainda não fala todas as palavras do vasto mundo adulto, mas ele se comunica melhor que a maioria dos adultos que conheço. As poucas palavras que fala, em metades abreviadas, identificam bem seus afetos e vontades. Sei disso porque ele tem dois tios: eu e meu irmão Sammuel. A mim ele chama de "Tí Rapha" e quando quer se referir ao meu irmão ele diz "Titio". O tempo fez com que o pequeno menino criasse seu modo de sair de si. Crescendo, Enzo percebeu que era preciso externar suas vontades, era preciso dizer o que queria e o que não queria. Coisa de gente! Assim, com seu dialeto próprio, percebo que ele cresce significando-se no tempo-espaço onde vive. E seu mundo vai se formando através das sensações que as palavras o oferecem. Talvez a nossa consciência seja apenas um mecanismos evolutivo e, se assim for, as palavras são a melhor expressão dessa evolução, dessa necessidade de se postar no mundo e adaptar-se a ele.
     As palavras invocam, sim, o tempo. Tempo de brincar, tempo de abrir mão de certezas e até de concordar com o que não se concorda apenas para ver um imbecil qualquer se calar e parar de encher o saco. As palavras invocam um tempos de saudades em sacramentos e ritos cotidianos. Leonardo Boff guarda a última bituca de cigarro que seu pai fumou antes de morrer: palavra sacramentada, palavra que traz a presença do pai dele. Palavra que traz um tempo que se foi, porque sacramentos são isso, palavras que encarnam o que não é mais em objetos, lembranças e penduricalhos.
    Já o tempo, esse deus impiedoso, utiliza da maior beleza da eternidade para nos dizer: "Tempus Fugit". Lembro-me agora do personagem John Keating, vivido por Robin Williams em "Sociedade dos Poetas Mortos". Ele sussurra para seus alunos... Car...pe...Di...em. "Aproveitem a vida garotos!" "Porque o tempo os sacrificará um dia desses." O tempo não sobreviveria sem as palavras. Ele precisa delas para se empoderar. Apesar de as palavras não viverem fora do tempo, elas são mais belas. Vivem para a eternidade. O tempo e a eternidade não são amigos.
    Quando Enzo me confundiu com um apresentador de TV talvez o que estivesse acontecendo ali fosse uma submissão do tempo às palavras. Em algum lugar eterno e não distante ele sabe que tem um tio e, apesar de o tempo estar passando, ele se colocou no mundo como um pequenino saudoso. Estava com saudades das minhas aporrinhações. (risos)
    O tempo é um altar cruel. As palavras são sacerdotisas! E nós? O que somos nesse mundo, nesse universo místico? Talvez pessoas a serem imoladas à eternidade. RJ