quarta-feira, 29 de junho de 2011

"O Caminho no livro de Atos", por Caio Fábio

No livro de Atos dos Apóstolos um dos modos de designar a Igreja como comunidade dos discípulos era chamá-la de “o Caminho”; e os discípulos de “os do Caminho”.

Portanto, tal designação é anterior ao tempo em que os cristãos vieram a ser pejorativamente nomeados “cristãos”. Sim, porque, no início, ser “cristão” era um apelido negativo que se dava aos discípulos do Caminho.

Paulo é o apóstolo em razão de quem essa designação de “o Caminho” mais aparece em Atos. No início ele perseguia “os do Caminho”; ou, como ele também diz: “... para levar presos os que eram do Caminho”; ou ainda: “... este Caminho, ao qual chamais de seita...”

Ora, a designação “o Caminho” é, no meu modo de ver, aquela que melhor expressa o espírito do Evangelho como movimento humano no mundo.

E por quê?

Primeiro porque Jesus é o Caminho. Segundo porque o chamado da fé é “hebreu”; e ser hebreu é ser alguém do caminho, da estrada, da peregrinação, como foi Abraão, o hebreu (hebreu vem da raiz da palavra que expressa o ato de cruzar, de atravessar, de andar em frente...). Terceiro porque, historicamente, um dos maiores problemas da Igreja foi o fato de que ela deixou o mundo, e, assim, deixou de ser Caminho no chão da Terra. Desse modo e por tal razão, logo a palavra “Igreja” passou a designar algo geográfico, estático, quantificável, e imutável; assim perdendo sua vocação de Igreja ( “os chamados para fora...”); e, por essa via, tornando-se cada vez mais um estrutura que vive de sua própria institucionalização.

No entanto, a designação “o Caminho” propõe que a Igreja seja a comunidade dos que se reúnem para adorar, discernir a Palavra, e ajudarem-se mutuamente, mas que não se fecham num ambiente, e nem chama o ambiente físico de Igreja, posto que Igreja, de fato, é um movimento de discípulos que andam no Caminho no chão do mundo.

Portanto, dizer “os do Caminho” seja, provavelmente, a melhor designação para traduzir o espírito leve, livre, desinstalado, peregrino, ajustável aos tempos e aos desafios da jornada que o Evangelho propõe aos discípulos de Jesus.

O Caminho é mais que um lugar ou um clube de iluminados. Trata-se de um movimento de subversão do Reino de Deus na Terra. Por esta razão, “o Caminho” é feito de gente chamada a assumir seu papel de sal que se dissolve e some para poder salgar; de fermento que se imiscui na massa e desaparece a fim de subverter; de pequena semente que se torna grande e generosa árvore que a todos acolhe; de Casa do Pai para os filhos Pródigos e também para os Irmãos Mais Velhos que se alegrarem com a Graça do perdão; e um ambiente espiritual no qual até o “administrador infiel” possa se consertar, e, assim, tentar fazer o melhor do que restou.

No Caminho todos são irmãos, e ninguém é juiz do outro. Assim, ajudam-se, mas não se esmagam uns aos outros, posto que no Caminho todos caem e levantam, todos se enfraquecem, mas não desanimam, todos são humanos, e, com humanidade são tratados, conforme o Dogma do Amor.

Desse modo, “os do Caminho” andam no mundo, no chão da terra, em meio à sociedade humana; e isto sem fazer propaganda religiosa, mas, antes e sobretudo, “sendo” povo de Deus entre os homens vivendo mediante a “fé que atua pelo amor”.

Jesus nunca quis fundar uma religião. Essa foi a razão pela qual nada foi mais danoso para a genuína fé do que terem-na feito tornar-se uma religião, entre as demais.

Seguir Jesus é aceitar um modo de ser, é assumir como vida as Suas palavras, e é dar testemunho do Evangelho não como uma “estratégia de evangelização” (proselitismo), mas sim como a natural vocação da Vida em Cristo.

“O Caminho da Graça” é a simples busca de viver o Evangelho com tal consciência entre os homens. Nada mais e nada menos do que isto!

Portanto, se o que você aqui ler for algo que receba o testemunho interior do Espírito Santo como sendo verdade conforme o espírito do Evangelho, então, una-se àqueles que desejam apenas andar conforme o chamado original dos “do Caminho”, conforme o livro de Atos.


Nele, em Quem fomos transportados da fixidez do Império das Trevas e plantados no chão vivo e móvel do Reino do Amor de Deus,

Caio

sábado, 18 de junho de 2011

"Perdoando Deus", de Clarice Linspector.


Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.


E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.


Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.


Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.


… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

"Feliz Ano Novo", de Rubem Fonseca.

         Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
         Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.
         Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.
         Vai mijar noutro lugar, tô sem água.
         Pereba saiu e foi mijar na escada.
         Onde você afanou a TV, Pereba perguntou.
         Afanei, porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?
         Tô morrendo de fome, disse Pereba.
         De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
         Não conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.
         Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.
         Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.
         As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?
         Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.
         Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.
         Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.
         Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?
         Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba.
         Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.
         No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.
         As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha.
         Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.
         Ela tava nua, disse Pereba.
         Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.
         Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.
         Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.
         Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago — pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.
         Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.
         Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.
         Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.
         Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.
         As ferramentas dele tão todas aqui.
         Aqui!?, disse Zequinha. Você tá louco.
         Eu ri.
         Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.
         Puta que pariu, disse Zequinha.
         E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?
         Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.
         Fumamos. Esvaziamos uma pitu.
         Posso ver o material?, disse Zequinha.
         Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.
         Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.
         O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.
         Já, eu disse, está lá em cima.
         A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.
         Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.
         É antiga mas não falha, eu disse.
         Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá.
         Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.
         Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.
         Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano.
         Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.
         É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.
         É, mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.
        Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.
         Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha.
         Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?
         Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.
         Cara importante faz o que quer, eu disse.
         É verdade, disse Zequinha.
         Ficamos calados, fumando.
         Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.
         O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?
         Zequinha chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.
         Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.
         O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.
         Que casa? Você tem alguma em vista?
         Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.
         Coloquei a lata de goiabada numa saca de feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.
         Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.
         Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.
         É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!
         Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.
         Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.
         Tem mais alguém em casa?, eu perguntei.
         Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.
         Crianças?
         Estão em Cabo Frio, com os tios.
         Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.
         Gonçalves?, disse Pereba.
         É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.
         Inocêncio, amarra os barbados.
         Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.
         Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.
         Pereba desceu as escadas sozinho.
         Cadê as mulheres?, eu disse.
         Engrossaram e eu tive que botar respeito.
         Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha.Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.
         Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.
         Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.
         Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.
         Podem também comer e beber à vontade, ele disse.
         Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.
         Como é seu nome?
         Maurício, ele disse.
         Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?
         Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.
         Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
         Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.
         Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.
         Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.
         Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.
         Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.
         Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.
         Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.
         Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha. Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
         Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.
         Eu não disse? Zequinha esfregou o ombro dolorido. Esse canhão é foda.
         Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.
         Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.
         E você... Inocêncio?
         Acho que vou papar aquela moreninha.
         A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.
         Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.
         Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.
         Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.
         Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.
         Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.
         Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?
         Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.
         Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.
         Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.
         Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.
         Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Filme: X-Men - Primeira Classe.




     Neste dia 13 fui ao cinema com meu irmão e um amigo em comum, Fernando. Minha proposta era ver um filme que fala do cotidiano com uma dosagem requintada de ficção científica: X-Men! Podem se assustar, mas para um trintenário que na adolescência colecionou HQs, X-Men é bem significativo.
     Não entrarei no mérito da produção e dos artistas (parabéns a Matthew Vaughn pela direção), e sim no da mensagem - incisivamente atual. Corroboro com algumas opiniões que percebem o Professor Xavier e Magneto como tipos de Martin Luther King e Malcom-X (respectivamente), na luta pelos direitos civis dos negros americanos. Ambos, sim, ambos lutavam pelos mesmos objetivos. Xavier e King são o esteriótipo do bem porque defendiam seus ideais através da não-violência, e Magneto e X, são a encarnação do mau porque defendiam os mesmos interesses que os mocinhos, mas defendiam o direito e a razão em exercer a violência como reação. Não quero apontar equivocados ou acertantes, porque já me cansei disso, mas nesse sentido é bom observarmos como pessoas que rumam para o mesmo alvo podem trilhar estradas completamente distintas. Atalhos? Não sei. Até que ponto a resistência não violenta é eficaz? Até que ponto a paz é uma opção? Dar outra face? Sim, é um princípio, mas percorrer os caminhos legais também o é, e quase a totalidade dos arcabouços jurídicos nos dá a legítima defesa como poderosa arma. Então eu me pergunto: qual caminho?
     No tocante aos demais personagens o que apreciei na grande tela foram os conflitos interiores. "Ser ou não ser". Mística (Raven) nos brindou com uma evolução espetacular pelo longa. De menininha indefesa e protegida do Xavier à uma mulher convicta e sem medo de mostrar a verdadeira pele. É um chamamento a todos nós para pararmos de nos esconder atrás do politicamente correto, atrás da proteção do não ser. Com isso não quero ser hipócrita ao ponto de pedir a todos que tirem suas máscaras, mas só gostaria de nos estimular a encenar menos... a diminuir nosso número de metamorfoses só por respeito humano.
     Fera (Dr. Henry Mcoy), meu predileto, percorre o caminho inverso de Raven. Na busca por enfiar-se debaixo da mesa, surge sua bestialidade. É exatamente o que acontece quando queremos reprimir nossos desejos mais obscuros. Aquilo que não queríamos que os outros vissem ou percebessem. Quando fazemos esse movimento nossa psique entra em um estado de colapso tal, que não conseguimos mais direcionar nossas energias e explodimos em um ataque incontido de animalidade, dando vazão aos nossos instintos mais primitivos. O caminho da Mística permitiu que ela harmonizasse seu ego, alter-ego e os aspectos da consciência, inconsciência e subconsciência. Coisa que o Dr. Mcoy não consegue, porque ao se reprimir ele detona sua panela de pressão. É fato que no desenrolar da história do Fera - como o conhecemos nos quadrinhos - ele consegue amadurecer, e desenvolver uma personalidade digna de admiração. São os caminhos aos quais me refiro!
     Algo que chama muita atenção nesse filme é a personalidade de Erik Lenhsher. Magneto não era ruim. A maximização de sua raiva por um único humano faz com que ele projete esse ódio para todos os processos sociais. É uma construção interessante se pensarmos do ponto de vista dos oprimidos e famigerados... dos que vivem à margem dessa sociedade do consumo, dessa sociedade do poder, da estética. Por que ele não se tornou um líder pacifista como Charles Xavier? Como Luther King? Digo de novo: são os diversos caminhos que nossos processos sociais interagindo com nossos processos mentais, espirituais e emocionais nos proporcionam. Sem metades. Sem erros. Sem acertos. São apenas estradas!
     Destrutor, Azazel, Banshee, Moira e outros X, humanos e mutantes, fazem o show de pirotecnia e drama, compondo assim, as linhas necessárias do roteiro.
     Pois bem, está ai um belo filme sobre aceitação social. Sobre o poder que existe no sentimento de pertencimento à um grupo. Sobre a soberania das circunstâncias quando nossas opções de vida ainda não estão bem afirmadas no âmago de nossas vontades.

     Eu recomendo!

sábado, 11 de junho de 2011

Texto "Moral, a escala de vocês", de Hugo Theophilo.

 



Faz um tempo abandonei a moral enquanto escala de valores, enquanto aferidor de pessoas, enquanto pré-requisito para amizades, enquanto passaporte para o céu.

Caim é um assassino, mas é de Deus...e ai de quem matá-lo!

Prostitutas e corruptos entram no céu primeiro que os religiosos, disse Jesus!

Não sou imoral como pensa o moralista. O imoral ainda se enxerga pela ótica da moral, ainda se percebe no pólo negativo da tabela de valores.

Continuo sendo afetado por essa escala. A vida social (há quem diga) está construída sobre ela. Muitos dos freios de um indivíduo são obras da moral. Segundo o sábio, sem o superego não existiria convivência! Dizem até que a ausência dele faz o psicopata!

Pois bem, abandonei a moral como escala de valores. Não sou indiferente a ela pois não dá pra ser, mas me relaciono com ela de forma consciente. Ela está fora de mim!

Abandono a moral para superá-la!

A todo instante ela reivindica e até exige a minha obediência, mas o Evangelho me salva desse confinamento.

"...se a justiça de vocês não for muito superior à dos fariseus e mestres da lei (moral), de modo nenhum entrarão no Reino dos céus."

A moral é a justiça que pergunta "Quem pecou para que este nascesse cego?"

O Evangelho é a justiça que responde: "Ninguém!"

http://hugotheophilo.blogspot.com.br/2011/04/moral-escala-de-voces.html

terça-feira, 7 de junho de 2011

Texto "O valor de todos os homens", de Raphael Juliano.

             

   Estava lembrando-me de algumas pessoas, de algumas personagens, de algumas estórias. Eu tentava concatenar as trajetórias de vidas individualizadas com a experiência Transcendental. Confesso que estava nesse processo sem nenhum juízo de valor, pois procuro não fazê-lo porque detesto que o façam de mim.
                Fui ao universo Marvel Comics e trilhei o caminho daqueles meus velhos conhecidos Kurt, o Noturno, Fera, o Dr. Mcooy, Ciclope, o mais velhos dos irmãos Summers. Lembrei-me também do meu amigo de cabeceira, Machado de Assis. Ah, cheguei à comoção quando em minha mente bateu aquele trejeito do amanuense Belmiro
                Em dado momento dessa minha viagem pelas máscaras e verdades daquelas figuras interessantes, lembrei-me de um velho conhecido; Jonas. Eu sempre quis entender a relação de Deus com Jonas, creio que foi por isso que minha consciência reivindicou a lembrança. Não sei se seria pretensão, mas eu queria entender. Confesso minha dificuldade inicial em compreender aquele tumulto relacional de ir, não ir....fugir.....e sei lá mais o quê....peixe grande engolindo e cuspindo. Então, exatamente no momento em que eu tentava mais uma vez ler aquela difícil teo- relação meu telefone vibrou, eu o olhei e pensei alto: the telephone. Para minha surpresa alguém que estava ao meu lado e se diz “crente” (não sei em que, ou quem) disse: “Eita que unção, hein? Lady Gaga?”
 E eu fique naquela: “ Am? O quê?”
 Ele continuou: “Essa aí tá no inferno.” 
                Bem, minha ficha caiu e fui arremessado ao mundo pop. Para o mundo das divas! Meu caro coleguinha referia-se àquela artista americana que arrasta multidões e tenta ser polêmica. Ela tem uma música chamada “The telephone”. Definitivamente não é o tipo da arte que eu curto. Não aprecio nada que seja para multidões. Gosto de fazer meus próprios processos.... gosto de caminhar e Caminhar.  Mas foi por uma sacada dele que eu tive um orgasmo intelectual. De Gaga voltei a Jonas e percebi que não tem nada a ver com ir ou deixar de ir simplesmente.  O alavancar da estória de Jonas não se trata de procurar um esconderijo para sua relação com o divino. O negócio daquele cidadão era o etnocentrismo que estava completamente arraigado em suas entranhas! Jonas achava que Deus possuía um senso desorientado de compaixão. Ele sabia que se fosse até Nínive e apresentasse àquele povo a carinha de Deus e ambos se entrosassem, Ele (Deus) relevaria sua “malícia” de outrora e faria festa de Graça. Os ninivitas apenas não conheciam esse tal “Eu Sou”. Era uma questão de “ Oi tudo bem?” ”Prazer, eu sou fulano.” Era uma questão de existências não-relacionais, que não se excluiam, necessariamente.
                Fiquei meio desorientado em como aquele contundente “essa aí tá no inferno” me abriu os olhos para o olhar valorativo d’Ele para conosco. Fiquei pasmo em como Lady Gaga foi epifânica e me mostrou como o probleminha d’Ele com Jonas era uma questão de valorização das pessoas.
                Não importa quem seja, onde está e qual crença professe, Deus valoriza o humano ser e o ser humano. E como nós não entendemos muito sobre as relações em profundidade, cantamos no ouvido d’Ele:” You called, I can't hear a thing / Você ligou, eu não consigo escutar nada.”(The Telephone music). É nossa melhor desculpa: “Não consigo entender!”
                Fui ao youtube e ouvi a música de Gaga. Definitivamente não gostei da arte com as palavras. A melodia consegue fazer alguns esqueletos balançarem e não creio que ela venceria algum festival de música mais exigente, mas daí entrar na ceara céu e inferno. Isso eu deixo para outra pessoa, afinal o olhar d’Ele é bem diferente do meu porque Sua régua de nivelamento é a graça, e não nacionalidade ou estilo musical. Estas duas últimas sim,.....(risos) são nossas!

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Texto "Culpa, a busca da perfeição", de Antônio Roberto Soares.



O título do texto abaixo poderia ser alterado claramente por CULPA, A TENTATIVA DO HOMEM DE SER DEUS. Por que? Por que é impressionante como a ciência, no caso a psicologia, testifica do que Deus já havia declarado e ensinado na Bíblia.
Quando o homem pecou, o primeiro sentimento nele foi o medo, derivado da usa nudez, ou seja, a culpa, e assim Adão coseu folhas de figueira na tentativa de cobrir sua nudez, isto é, desenvolvera a partir daí mecanismos de fuga de quem ele se tornara, e iniciou-se aí uma falsa personalidade, o lugar onde todo o homem se esconde.

“E chamou o Senhor Deus ao homem e lhe perguntou: Onde estás? Ele respondeu: Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo, e me escondi.” (Gn. 3:9,10)

A trídade que governa todas as ações e motivações humanas sem exceção nenhuma, é a culpa – medo – fuga (falsa personalidade).
Você e eu não somos o que achamos que somos até que haja a intervenção divina do poder redentor do sangue e da Palavra de Jesus, o que acontece dia a dia operado pelo Espírito Santo, e isso, com muita dor, pois se trata de uma cirurgia de alma, que muitas vezes se dá sem anestesia, pois “por muitas tribulações nos importa entrar no Reino de Deus.” (At.14:22)

Renato Montuani Filho

CULPA - A BUSCA DA PERFEIÇÃO
Antônio Roberto Soares

Por detrás de nossas tristezas e frustrações, de nossas insatisfações na vida, de nossos tédios e angústias, está um sentimento, o mais arraigado em nosso comportamento e responsável por grandes sofrimentos psicológicos, que é o sentimento de culpa. O sentimento de culpa é o apego ao passado, é uma tristeza por alguém não ter sido como deveria ter sido, é uma tristeza por ter cometido algum erro que não deveria ter cometido. O núcleo do sentimento de culpa são estas palavras: "Não deveria...". A culpa é a frustração pela distância entre o que nós fomos e a imagem de como nós deveríamos ter sido. Nela consiste a base para a auto-tortura. Na culpa, dividimo-nos em duas pessoas: uma real, má, errada, ruim, e uma ideal, boa, certa e que tortura a outra. Dentro de nós processa-se um julgamento em que o Eu ideal, imaginário, é o juiz e o Eu real, concreto, humano, é o réu. O Eu ideal sempre faz exigências impossíveis e perfeccionistas. Assim, quando estamos atormentados pelo perfeccionismo, estamos absolutamente sem saída. Como o pensamento nos exige algo impossível, nunca o nosso Eu real poderá atendê-lo. Este é um ponto fundamental.
Muitas pessoas dedicam a sua vida a tentar realizar a concepção do que elas devem ser, em vez de se realizarem a si mesmas. A diferença entre auto-realização e realização da imagem de como deveríamos ser é muito mais importante. A maioria das pessoas vive apenas em função da sua imagem ideal e este é um instrumento fenomenal para se fazer o jogo preferido do neurótico: a auto-tortura, o auto aborrecimento, o auto-castigo, a autopunição, a culpa.
Quanto maior for a expectativa a nosso respeito, quanto maior for o modelo perfeccionista de como deve ser a nossa vida, maior será o nosso sentimento de culpa. A culpa é a tristeza por não sermos perfeitos, é a tristeza por não sermos Deus, por não sermos infalíveis; é um profundo sentimento de orgulho e onipotência; é uma incapacidade de lidar com o erro, com a imperfeição; é um desejo frustrado; é o contato direto com a realidade humana, em contraste com as suas intenções perfeccionistas, com os seus pensamentos megalomaníacos a respeito de si mesmo. E o mais grave é que aprendemos o sentimento de culpa como virtude!
A culpa sempre se esconde atrás da máscara do auto-aperfeiçoamento como garantia de mudança e nunca dá certo. Os erros dos quais nos culpamos são aqueles que menos corrigimos. A lista de nossos "pecados" no confessionário é sempre a mesma. A culpa, longe de nos proporcionar incentivo ao crescimento, faz-nos gastar as energias numa lamentação interior por aquilo que já ocorreu, ao invés de as gastarmos em novas coisas, novas ações e novos comportamentos. Por isto mesmo, em todas as linhas terapêuticas, este é um sentimento considerado doentio. Não existe nenhuma linha de tratamento psicológico que não esteja interessado em tirar dos seus pacientes o sentimento de culpa. A culpa é um auto-desprezo, um auto-desrespeito pela natureza humana, por seus limites e pela sua fragilidade. A culpa é uma vingança de nós mesmos por não termos atendido a expectativa de alguém a nosso respeito, seja esta expectativa clara e explícita, ou seja uma expectativa interiorizada no decorrer da nossa vida. Por isto é que se diz que, ao nos sentirmos culpados, estamos alienados de nós mesmos, e a nossa recriminação interna não é, nem mais nem menos, do que vozes recriminatórias dos nossos pais, nossas mães, nossos mestres ou outras pessoas que ainda residem dentro de nós.
Mas aquilo que nos leva a esse sentimento de culpa, aquilo que alimenta esta nossa doença auto-destrutiva, são algumas crenças falsas. Trabalhar o sentimento de culpa é, primordialmente, descobrir as convicções falsas que existem em nós, aquelas verdades em que cremos e que são errôneas, e nos levam a este sentimento. A primeira delas é a crença na possibilidade da perfeição. Quem acredita que é possível ser perfeito, quem acha que está no mundo para ser perfeito, quem acha que deve procurar na sua vida a perfeição, viverá necessariamente atormentado pelo sentimento de culpa. A expectativa perfeccionista da vida é um produto da nossa fantasia, é um conceito alienado de que é possível não errar, que é possível viver sem cometer erros.
Quanto maior for a discrepância entre a realidade objetiva e as nossas fantasias, entre aquilo que podemos nos tornar através do nosso verdadeiro potencial e os conceitos idealistas impostos, tanto maior será o nosso esforço na vida e maior a nossa frustração. Respondendo a esta crença opressora da perfeição, atuamos num papel que não tem fundamento real nas nossas necessidades. Nos tornamos falsos, evitamos encarar de frente as nossas limitações e desempenhamos papéis sem base na nossa capacidade. Construímos um inimigo dentro de nós, que é o ideal imaginário de como deveríamos ser e não de como realmente somos. Respondendo a um ideal de perfeição, nós desenvolvemos uma fachada falsa para manipular e impressionar os outros.
É muito comum, no relacionamento conjugal, marido e mulher não estarem amando um ao outro e, sim, amando a imagem de perfeição que cada um espera do outro. É claro que nenhum dos parceiros consegue corresponder a esta expectativa irreal e a frustração mútua de não encontrar a perfeição gera tensões e hostilidades, num jogo mútuo de culpa. Esta situação se aplica a todas as relações onde as pessoas acreditam que amar o outro é ser perfeito. Quando voltamos para nós exigências perfeccionistas, dividimo-nos neuroticamente para atender ao irreal. Embora as pessoas acreditem que errar é humano, elas simplesmente não acreditam que são humanas! Embora digam que a perfeição não existe, continuam a se torturar e a se punir e continuam a torturar e a punir os outros por não corresponderem a um ideal perfeccionista do qual não querem abrir mão.
Outra crença que nos leva à culpa, esta talvez mais sutil, mais encoberta e profunda, é acreditarmos que há uma relação necessária entre o erro e a culpa, é a vinculação automática entre erro e culpa. Quase todas as pessoas a quem temos perguntado de onde vêm os seus sentimentos de culpa, nos respondem taxativamente que vêm de seus erros. Acreditamos que a culpa é uma decorrência natural do erro, que não pode, de maneira alguma, haver erro sem haver culpa. Se acreditamos nisto, estamos num problema insolúvel. Ou vamos passar a vida inteira tentando não errar para não sentirmos culpa - e isto é impossível porque sempre haverá erros em nossa vida - ou então passaremos a vida inteira nos sentindo culpados porque sempre erramos. Essa vinculação causal entre erro e culpa é profundamente falsa. A culpa não decorre do erro, mas da maneira como nos colocamos diante do erro; vem do nosso conceito relativo ao erro, vem da nossa raiva por termos errado. Uma coisa é o erro, outra coisa é a culpa; erros são erros, culpa é culpa. São duas coisas distintas, separadas, e que nós unimos de má fé, a fim de não deixarmos saída para o nosso sentimento de culpa. O erro é o modo de se fazer algo diferente, fora de algum padrão.
O que é chamado erro é a saída fora de um modelo determinado, que pode ser errado hoje e não amanhã, pode ser errado num país e não ser errado em outro. A culpa é um sentimento, vem de nós, vem da crença de que é errado errar, que não podemos errar, que devemos ser castigados pelas faltas cometidas; crença de que a cada erro deve corresponder necessariamente um castigo, de que a cada falta deve corresponder uma punição. Aliás, o sentimento de culpa é a punição que damos a nós mesmos pelo erro cometido. Não é possível não errar, o erro é inerente à natureza humana, ele é necessário a nossa vida. Na perfeição humana está incluída a imperfeição. Só crescemos através do erro.
As pessoas confundem assumir o erro com sentir culpa. Assumir o erro é aceitar que erramos, é nos responsabilizarmos pelo que fizemos ou deixamos de fazer. Mas quando acreditamos que a culpa decorre do nosso erro, tentamos imputar a outros a responsabilidade dos nossos erros, numa tentativa infrutífera de acabar com a nossa culpa.
A propósito do erro, há um texto interessantíssimo no livro "Buscando Ser o que Eu Sou", de Ilke Praha, que diz: "O perfeccionismo é uma morte lenta. Se tudo se cumprisse à risca, como eu gostaria, exatamente como planejara, jamais experimentaria algo novo, minha vida seria um repetição infinda de sucessos já vividos. Quando cometo um erro vivo algo inesperado. Algumas vezes reajo ao cometer erros como se tivesse traído a mim mesmo. O medo de cometer erros parece fundamentar-se na recôndita presunção de que sou potencialmente perfeito e de que, se for muito cuidadoso, não perderei o céu. Contudo, o erro é uma demonstração de como eu sou, é um solavanco no caminho que tracei, um lembrete de que não estou lidando com os fatos. Quando der ouvidos aos meus erros, ao invés de me lamentar por dentro, terei crescido". Este é o texto.
Algumas pessoas nos perguntam: "Mas como avançar em relação a este sentimento, como arrancar de mim este hábito de me deprimir com os erros cometidos?". Só existe uma saída para o sentimento de culpa. Façamos uma fantasia: imaginemos por um instante que estamos à morte e nossos sentimentos deste momento são de angústia, tristeza e frustração por todos os erros cometidos, por tudo o que deveríamos ter feito e não fizemos; remorsos pelos nossos fracassos como pai, como mãe, como profissional, como esposo, como esposa, como religioso, como cidadão, mas, ao mesmo tempo, estamos com um profundo desejo de morrer em paz, de sair desse processo íntimo de angústia e morrer tranquilos. Qual a única palavra que, se pronunciada neste momento, sentida com todo coração, teria o poder de transformar a nossa dor em alegria, o nosso conflito em harmonia, a nossa tristeza em felicidade? Somente uma palavra teria essa magia. A palavra é: Perdão.
O Perdão é uma palavra perdida em nossa vida. O primeiro sentimento que se perde no caminho da loucura é o sentimento de perdão, o sentimento de auto-perdão. Se a culpa é a vergonha da queda, o auto-perdão é o elo entre a queda e o levantar de novo. O auto-perdão é o recomeço da brincadeira depois do tombo: "Eu me perdôo pelos erros cometidos, eu me perdôo por não ser perfeito, eu me perdôo pela minha natureza humana, eu me perdôo pelas minhas limitações, eu me perdôo por não ser onipotente, por não ser onipresente, por não ser onisciente, eu me perdôo por...". O perdão é sempre assim mesmo, é pessoal e intransferível.
O perdão aos outros é apenas um modo de dizermos aos outros que já nos perdoamos. Perdoarmo-nos é restabelecer a nossa própria unidade, a nossa inteireza diante da vida, é unir outra vez o que a culpa dividiu, é uma aceitação integral daquilo que já aconteceu, daquilo que já passou, daquilo que já não tem jeito; é o encontro corajoso e amoroso com a realidade.
Somente aqueles que desenvolveram a capacidade de auto-perdão conseguem energia para uma vida psicológica sadia. A criança faz isto muito bem. O perdão é a própria aceitação da vida do jeito que ela é, nos altos e nos baixos. O auto-perdão é a capacidade de dizer adeus ao passado, é a aceitação de que o passado é uma fantasia, é apenas saber perder o que já está perdido. O auto-perdão é um sim à vida que nos rodeia agora, é uma adesão ao presente, à única coisa viva que possuímos, que são nossas possibilidades neste momento. Não podemos abraçar o presente, a vida, o passado e a morte ao mesmo tempo. O perdão é uma opção para a vida, o auto-perdão é a paciência diante da escuridão, é o vislumbre da aurora no final da noite. O auto-perdão é o sacudir da poeira, é a renovação da auto-estima e da alegria de viver, é o agradecimento por sabermos que mais importante do que termos cometido um erro é estarmos vivos, é estarmos presentes.
Para encerrar este tema, quero sugerir-lhes uma reflexão sobre este texto escrito por Frederick Pearls: "Que isto fique para o homem! Tentar ser algo que não é, ter idéias que não são atingíveis, ter a praga do perfeccionismo de forma a estar livre de críticas, é abrir a senda infinita da tortura mental. Amigo, não seja um perfeccionista. Perfeccionismo é uma maldição e uma prisão. Quanto mais você treme, mais erra o alvo. Amigo, não tenha medo de erros, erros não são pecados, erros são formas de fazer algo de maneira diferente, talvez criativamente nova. Amigo, não fique aborrecido por seus erros. Alegre-se por eles, você teve a coragem de dar algo de si".