sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Hoje eu decidi molhar os pés



Hoje é uma sexta de noite chuvosa em Belo Horizonte, final de novembro, dia vinte e oito, e a chuva parece enfim querer chegar. Para mim, ela anuncia possibilidade de renovação, possibilidade de que não aconteça racionamento de água. Mas anuncia também a pressa da memória das pessoas, a pressa da existência consumida.

Quando saí do trabalho saquei meu pequeno guarda-chuva da mochila, ciente de que iria me molhar. Vi tanta gente correndo pela rua! Claro, é um desejo legítimo: não se molhar. Então me lembrei de uma conversa que tive há dias com um amigo sobre como seria bom tomar um banho de chuva nesses tempos de seca. Lembrei-me das pessoas reclamando do calor e do preço do limão (a caixa subiu 43%). Continuei meus passos lentos em direção ao metrô. Eu era empurrado e olhado com estranheza por causa da minha lentidão. Os pés já estavam molhados, então não pulei a poça de água. Já no vagão consegui um lugar para sentar e, quando tirei meu Júlio Verne para continuar a leitura, percebi que não podia ler, porque tinha uma goteira bem em cima de mim, fechei-o e esperei por meu destino. Desembarquei entre mais correria, com água molhando meus pés.


Compreendo que molhar as meias é horrível. Todavia, às vezes, pode ser um evento profético. Pode significar que teremos terra boa e fartura, mas hoje, não sei o porquê, ninguém se lembrou do calor e da escassez. Como nossa memória tem pressa, muitos de nós se esqueceram do problema anterior, e a chuva se tornou o maior problema do dia. Hoje eu decidi continuar andando devagar e molhar os pés. Desejo um bom Black Friday para os que se esqueceram do calor e do preço do limão. 

P.s.: e a principal nascente do rio São Francisco voltou a jorrar.


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Deixem-nos morrer!!

*Imagem da morte jogando xadrez com o cavaleiro, do filme 'O Sétimo Selo'.


A morte de Brittany Maynard foi linda como sua vida. Em sua cama, rodeada por aqueles que ela amava e com a música que ela escolheu. Antes que o câncer cerebral atingisse um estágio no qual a paciente não teria mais autonomia e sua sobrevida fosse garantida pelos médicos e parentes, a moça realizou um suicídio assistido.

Escrevi outro dia sobre o direito ao parto (normal ou cesariana), e a atitude dessa jovem me fez pensar sobre o nosso direito a uma morte digna. Temos dificuldade para falar sobre isso por causa da nossa raiz judaico-cristã. Mas além da mitologia da religião, que tenta eternizar nossa existência, a medicina e sua ética, afetada pela mesma matriz, tentam prolongar a todo custo a vida dos doentes terminais. Recentemente vi um garoto de pouco mais de vinte anos, que lutava contra um câncer, ficar em carne viva em cima de uma cama, recebendo cuidados paliativos, porque não nos permitimos discutir tais questões. Ele estava entubado, inconsciente e sequer podia receber os carinhos da mãe, porque ao menor toque, a pele se desmanchava. Não estamos falando aqui de pessoas que têm possibilidades de terapia. Estamos falando do fim das possibilidades e, nessa perspectiva, existe um pudor funcional em todos nós: temos dificuldade em falar da finitude.

O Conselho Federal de Medicina, em 2012, publicou uma resolução chamada de Diretiva Antecipada de Vontade. O objetivo é de que o paciente registre seus valores e princípios e, de maneira clara, especifique os procedimentos aos quais aceita ser submetido. O documento precisa ser registrado em cartório, e seu declarante tem que ter um procurador. Contudo ainda existe um longo caminho a ser trilhado em todo o mundo acerca do assunto. A própria Brittany teve que se mudar da Califórnia para o Estado de Oregon para se beneficiar da lei do suicídio assistido. Ela, que antes de morrer,  esteve no Vietnã, em Camboja, em Laos, na Cingapura e na Tailândia. Que trabalhou um verão na Costa Rica e que viajou para a Tanzânia, para escalar o Kilimanjaro. Ela que fez aulas de escalada no Equador e mergulhou em Galápagos, em Zanzibar, nas Ilhas Cayman e basicamente em toda ilha que visitou, não pode morrer na terra onde nasceu, porque não nos permitimos falar sobre a eutanásia.

Quando as pessoas quiserem falar sobre o assunto, farei coro com aqueles que pedirão: deixem-nos morrer!