Nigéria: a dor não vai ficar lá fora
Há algum tempo não me comovia com violência. Não se tratava de insensibilidade, mas o fato é que não presenciava nenhum atentado gratuito contra a vida humana há mais de um ano, desde que deixei a atividade operacional de policiar as ruas e passei a trabalhar em uma repartição administrativa da PM em Minas. Quando estava nas ruas estive com muitas vítimas: vítimas de estupros, vítimas de pais violentos, vítimas de armas de fogo e de objetos perfuro-cortantes. Nunca maximizei o sofrimento de ninguém, mas ajudava sem internalizar em profundidade a dor do outro. E para isso eu precisava de algum anestésico: música, alguma cerveja, literatura. Tudo para garantir que a dor daquelas vítimas não entrasse em minha alma e se instalasse lá dentro. Tudo para garantir que a dor ficasse do lado de fora.
Quando me sentei à mesa e passei a despachar uma infinidade de documentos, não percebi mais o mundo a minha volta. Deixei de me envolver com a dor do mundo e acabei assimilando que não existe dor lá fora. Isso até ontem.
Durante um encontro com amigos queridos em torno do Evangelho, discutimos a situação das crianças bruxificadas na Nigéria. Apesar da discussão, não havia dor entrando em mim porque não havia toque relacional. Apesar dos relatos dos meus amigos, eu só imaginava a dor dos pequenos. Certo é que saímos dali dispostos a ajudar. Mesmo sem ter a dor em meu peito, eu queria ajudar.
Quando cheguei em casa acessei meu e-mail e nele havia um link do Caminho da Graça que me conduziu a imagens que me proporcionariam o toque no caos. Vi pastores neo pentecostais da teologia da prosperidade roubarem famílias com a promessa de que exorcizariam os espíritos maus que assombravam sua casas. E onde estariam esses espíritos? Pasmem: nas crianças!
Sim aqueles falsos pastores cobram a metade da renda média anual de uma família nigeriana para expulsarem espíritos de crianças que eles dizem serem crianças bruxas. Acontece assim: Digamos que o pai de família está com problemas de emprego, a mãe está doente, porém eles freqüentam alguma denominação religiosa (não ouso aqui dizer Igreja, pois o sentido desta para mim é outro) e ali pagam seus tributos-dízimo, eles pensam que não podem sofrer as calamidades da vida tais como morte, enfermidade, problemas financeiros e outros. Neste momento, então, tem que culpar alguém. Sobra para a criança ou para as crianças, que são apontadas como bruxas. Elas são levadas ao charlatão-pastor e submetidas a todo tipo de barbaridade em uma mistura de rituais de um pseudo-evangelho e misticismo pagão que visa exorcizá-las para tentar recuperar a prosperidade da família.
Os pequenos são queimados, tem suas cabecinhas perfuradas por pregos, apanham e em alguns casos são até decapitados.
A este contexto de terror soma-se a omissão da comunidade evangélica internacional, dos órgãos internacionais que lutam pelos direitos humanos e da maioria das ONGs. Estas últimas inclusive, em alguns casos, aliando-se aos falsos-sacerdotes, desviando recursos destinados aos orfanatos que acolhem as crianças bruxificadas e deixando de prestar ajuda humanitária aos pequeninos, pois quanto mais crianças bruxas mais dízimos, mais dinheiro que será dividido entre os pastores neo pentecostais e essas mesmas organizações que deveriam proteger os direitos dos pequeninos. Ou seja: Se essas ONGs do diabo interferirem e protegerem as crianças, serão menos famílias a serem roubadas pelos cultos da prosperidade, sendo assim os macumbeiros subornam as entidades para que elas não desempenhem seu papel em prol de uma boa grana. Nas palavras de um amigo: “o bem e o mal se juntam”.
Tomei consciência de tudo isso pelos relatos de viagem do Léo Santos, nosso irmão-amigo que está lá pelo Caminho Nações, tentando minimizar o drama daqueles inocentes. As imagens que vi foram fortes. Vi mais uma vez a morte sendo propaganda em nome da religião e do dinheiro. Vi a morte sendo propagada em nome Daquele que para mim só se move em vida e esperança. Vi homens inverterem a ordem da Graça de Deus. Ao invés de subverterem a ordem e implantarem graça de baixo prá cima – “fracos confundindo fortes” – nesse mundo, como supostos discípulos Dele, inverteram a dinâmica e implantam a desgraça na terra.
Senti a dor daqueles pequeninos. Senti dor novamente! Pelo toque relacional do olhar, do ver, senti a dor irradiar em meus membros e pulsar em minhas veias. Ela faz parte de mim agora. Não está mais lá fora. Estou nessa causa. Talvez nunca vá ao campo, mas daqui onde estou sei que muito posso fazer. E é isso que estamos tentando fazer no Caminho Nações/Caminho da Graça, não sofrermos nenhum surto missionário, mas estarmos cientes de que em nossas realidades, através de nossos grupos de amigos, através das redes-sociais podemos juntar esforços e ajudar aqueles meninos e meninas a sentirem menos dor, a não sentirem mais medo de Deus, e, sobretudo a não sentirem mais medo de adultos. Podemos ajudar as crianças bruxificadas da Nigéria a apenas serem crianças de novo.
Você pode pensar: "mas existem tantas crianças aqui". Mas não existe ninguém que faça nada pelas crianças da Nigéria, e se ninguém faz por elas, seremos nós que o faremos.
A dor não vai ficar lá fora!
Belo Horizonte, 21 de novembro de 2011.
Raphael Juliano
p.s. Vocês que me conhecem sabem que eu nunca pediria ajuda se não fosse realmente necessário. Se você puder ajude-nos a ajudar: Vejam o link acima.
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