Ontem decidi ver pela segunda vez o filme “Magnólia”, de Paul Thomas Anderson. Confesso que quando assisti a esta película pela primeira vez não tive os mesmos orgasmos intelectuais que me vieram ontem.
O filme mostra a h-estória de várias pessoas que moram na rua magnólia. Isso me passou despercebido na primeira exibição, mas ontem percebi que em um dado momento quase todas as personagens se cruzam pela mesma via.
O emaranhado do diretor Thomas Anderson retrata diversos níveis de relação, mas algo que salta da tela a todo instante é a relação entre pais e filhos.
Longe de meu interesse querer ser um crítico de cinema, e por isso mesmo não vou aprofundar-me na obra, mas tão somente naquilo que o filme traz de mais revelador. O elenco está cheio de ótimos atores, desde carinhas bonitinhas (Tom Cruise) à caronas não tão bonitinhas, mas de muito talento, inclusive um que eu amo: Philip Seymor Hoffman.
O ponto comum das personagens-revelação é a filiação. Frank foi abandonado pelo pai a cuidar da mãe enferma. Cláudia foi molestada pelo pai. Donnie foi roubado pelos pais e Stanley, um garotinho-gênio, é manipulado pelo genitor.
A relação entre filhos e pais dos três primeiros se deu no passado, e o passado acabou batendo às portas dos mesmos. Frank se tornou um guru do sexo, ridicularizando toda e qualquer relação conjugal ensinando como os homens deveriam tornar as “vaginas depósitos de esperma”. Cláudia, molestada, torna-se uma cocainômana frustrada que não tem prazer nas relações com os homens. E Donnie, vencedor de um grande prêmio em um programa de perguntas e respostas, tem o mesmo prêmio roubado pelos malfeitores paternos e torna-se um ex-gênio frustrado e sexualmente mal resolvido. Até aqui todos marcados pelas mãos paternas. O grande lance do roteiro é Stanley, que vive o presente com o pai pressionando-o para que ele ganhe dinheiro através de sua larga inteligência, no mesmo programa que Donnie um dia se tornara o garoto sensação.
A cena reveladora para mim foi a chuva de rãs (Prestem atenção que aparece a todo momento no filme a imagem “8:2”). Em um dado momento do filme, quando os destinos estão selados, rãs começam a cair do céu. Imediatamente fui remetido ao primeiro testamento da bíblia, ao livro de Êxodo (a imagem “8:2” se refere ao capítulo oitavo, versículo segundo de Êxodo), quando Deus manda rãs como castigo ao povo egípcio.
Importante mencionar também que o livro de Êxodo traz uma definição que os evangélicos costumam chamar de “maldição hereditária”. Isso porque Deus afirma, em dado momento de sua estória legal com a humanidade, que cobraria os pecados dos pais nos filhos.
As rãs no velho testamento estavam associadas com a deusa Heqt, que ajudava as mulheres no parto. É uma praga cômica, pois a deusa Heqt, dos egípcios, estava vinculada à fertilidade, ao parto, ou seja, indiretamente, ao termo “filiação”. Não quero teologizar, mas apenas partilhar aquilo que me fez rir muito. O filme foi mais epifânico para mim que o próprio antigo testamento. Thomas Anderson, a meu ver, quis mostrar a cara engraçada de Deus, demonstrando sua soberania brincando com a deidade dos povos do Egito – escrevo isso com todo respeito aos seguidores de Heqt, afinal são apenas palavras de um apreciador de cinema e não de um teólogo, como já disse.
Magnólia não é um filme religioso. Mas para a compreensão da película é necessário ter lido algo do velho e do novo testamento.
Fica claro, então, que os roubos, abusos, negligencias dos pais são refletidos nos filhos, mas não da maneira como os evangélicos colocam: “maldição hereditária”. E sim em uma relação simples de causa e efeito onde muitas pessoas não conseguem lidar com situações limites e são “castigadas” pelas suas próprias emoções e descontroles. A perda do equilíbrio é o pior castigo que podemos permitir que nos aconteça. A chuva de rãs é apenas a descrição artística desse enredo conflitivo.
O melhor no filme depois da chuva de sapos é a dimensão redentora de Stanley. O único personagem que ainda vive a relação de vítima oprimida pelo pai. Depois de desistir de vencer o programa de gênios e faturar o dinheiro, Stanley foge do pai e vai à escola. Depois da queda glamorosa dos sapinhos, ele retorna para casa e acorda o papai sacana com a frase: “Pai você precisa me dar mais carinho.” Percebo um tipo humano redentor em Stanley – tipo para nós sociólogos é a representação ideal que pode ajudar na compreensão de um sistema. Se percorrermos o novo testamento esse tipo ao qual me refiro é reportado a Jesus. O grande judeu em suas biografias mostra a todo tempo que não existe “maldição” onde a graça preenche. Ele mostra que o amor é capaz de nos reorientar aos nossos eixos, ao equilíbrio. Stanley personaliza o trecho “Cristo levou sobre si nossas maldições”.
Imediatamente todos os outros personagens se reorientam. Cláudia encontra o policial bom e os dois se apaixonam. Frank perdoa seu pai no leito de morte do antigo genitor-carrasco. Donnie se reconhece como pessoa com autodeterminação em todas as dimensões de sua vida. E o pequenino Stanley vislumbra tomar posse do amor que reivindicou do pai.
Magnificamente o filme me remeteu ao poder do amor. Ao poder de libertação e redenção que as relações podem ter. Elas podem sim, aprisionar e oprimir, mas quando se tem a revelação da gratuidade genuína das relações em profundidade, ninguém fica preso.
A gratuidade dessas relações de profundidade são demonstradas pelos anjos-humanos que são condutores do amor que flui de Stanley. O policial ingênuo. O enfermeiro bondoso (meu favorito Philip Seymor Hoffman) a esposa (arrependida) do pai de Frank, a repórter instigadora de verdades. Todos co-participes na redenção dos personagens amaldiçoados.
Lembrei-me muito do saudoso Renato Russo:
“Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser,
Quando você crescer?”
São crianças como você
O que você vai ser,
Quando você crescer?”
Fica a reflexão: quem nós estamos culpando? Quem seremos hoje? “Porque se você parar prá pensar” não existe amanhã. Temos que amar hoje porque o amor lança fora toda maldição.
RJ
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